segunda-feira, junho 08, 2009

Memorial do Convento e Exame Nacional


Pois bem, o Exame Nacional de Português está à porta (dia 16), e venho aqui apenas deixar uma pergunta no ar: até que ponto é que esta obra (Memorial do Convento) poderá servir de base para o exame? A falta de pontuação e o desrespeito por regras gramaticas que são mais que vistas durante a obra, se forem "aplicadas" no exame, é descontado?


Vejamos, por exemplo, o seguinte trecho de José Saramago, em Memorial do Convento: "Quando Blimunda acorda, estende a mão para o saquitel onde costuma guardar o pão, pendurado à cabeceira, e acha apenas o lugar. Tacteia o chão, a enxerga, mete as mãos por baixo da travesseira, e então ouve Baltasar dizer, Não procures mais, não encontrarás, e ela, cobrindo os olhos com os punhos cerrados implora, Dá-me o pão, Baltasar, dá-me o pão, por alma de quem lá tenhas, Primeiro me terás de dizer que segredos são estes, Não posso, gritou ela, e bruscamente tentou rolar para fora da enxerga, mas Sete - Sóis deitou-lhe o braço são, prendeu-a pela cintura, ela debateu-se brava, depois passou-lhe a perna direita por cima ..."

Pergunto: porque é que o discurso directo não é precedido de travessão, em diferente parágrafo?
Já agora, porque é que também não grafam minúscula, após a vírgula, mesmo tratando-se de discurso directo?


Quando li Memorial do Convento, dei comigo quase com dificuldades de respiração uma vez que, sem pontuação, e interiorizadas técnicas de leitura, o texto avançava debaixo dos meus olhos sem me dar tréguas. Custou-me, sim tive dificuldade em aceitar... esta liberdade linguística.

Pela minha experiência, tenho dificuldades em lidar com os "atropelos" gramaticais (não por achar que a língua seja um organismo estático... porque não o é...) porque numa sala de aula a abordagem da estrutura da língua surge (é inevitável para uma relação forma/conteúdo) e perante jovens curiosos que contestam, muitas vezes, o uso da prosódia, mas que os programas contemplam (a correcção dos exames nacionais prevê cotação... ou falta dela... para "punir" exactamente isso - ex.: uso indevido da vírgula entre o sujeito e o predicado ou ainda entre este e o complemento directo...) fica-se um pouco à toa... isto é, diz-se-lhes que as regras são estas... mas depois diz-se-lhes também que um escritor usa a sua liberdade, que quebra as regras, uma vez que um escritor, como tal, deverá exactamente quebrar "status quo", ser marginal, numa palavra, ser incómodo e não estar "engagé" com o sistema! A sagacidade dos jovens é cruel...:) dizem: " Pois... mas ele é Prémio Nobel.." e alguém responde:" Pois...." Mas encarando a produção literária como uma forma de arte, que o é, devemos estar abertos a diferentes formas quer a nível sintáctico quer a nível semântico, só assim o Homem se liberta de amarras.

Já sei que os engraçadinhos já estão a piscar o olho, danadinhos de gozo, a dizer que aquilo foi escrito para ser lido por pessoas inteligentes! Mas, enfim, eu sou como sou e, provavelmente, o Criador, na hora de distribuir argúcia, sabedoria, ter-se-á distraído e esqueceu-se de uns quantos... A verdade é que o achei intragável e, francamente, cheguei ao fim sem ter percebido patavina. Cada página transformara-se, para mim, num sacrifício. Como disse, chegava-me a faltar o ar. E, em anóxia, eu não consigo raciocinar!

Eu compreendo perfeitamente que as coisas devem obedecer a um mínimo de regras sob risco de deixarem de ser elas mesmas, e aceito até um meio - termo ou compromisso, entre o gramaticamente correcto e aquilo que não é gramaticamente correcto.
Haverá assim que distinguir entre aqueles que não utilizam as regras e disso fazem alarde, como se do rompimento das regras, por si, resultasse forçosamente alguma coisa de bom e aqueles que rompem as regras porque algumas delas são mesmo anacrónicas ou não se adaptam àquilo que se pretende.
A forma e conteúdo vivendo num grau de interdependência nunca poderão ser limitativos um do outro, sob risco de cristalização. Ora, o mundo corre tão depressa que já temos alguma dificuldade em aparar-lhe as inovações e as descobertas. Mais difícil ainda se torna a causa quando se pretende que essas inovações sejam aparadas de uma maneira específica e não da forma que elas vêm.
É assim como que aparar com um cesto de vime uma chuva repentina.


Só resta saber se, os alunos escreverem "à la Saramago", serão punidos com cotação aqui e ali, ou serão considerados novos artistas.